Por: Luiz Cláudio
Cunha *
Especial para o Sul21
Especial para o Sul21
Incapaz de vender a alma ao
diabo, a Rede Bandeirantes acaba de revender seu santo horário da noite para o
pastor R.R. Soares, o líder da Igreja Internacional da Graça de Deus. O seu
‘Show da Fé’ de 20 minutos, que começava religiosamente às 21h, agora vai durar
uma hora inteira, a partir das 20h30. Não se sabe ainda quanto custou esse novo
e triplicado milagre, mas pelo contrato antigo o bom pastor já pagava R$ 5
milhões mensais à Band. O vil metal falou mais alto para a TV de Johnny Saad,
que anunciava a devolução do horário nobre da noite a seriados consagrados,
como o 24 Horas, para concorrer com as novelas da Globo e as séries do SBT,
todas com melhor audiência.
A novidade escangalhou os
planos do argentino Diego Guebel, que assumiu a direção artística da Band em
outubro passado com a promessa de recuperar o espaço nobre e caro da noite
paraatrações mais mundanas do que a prosopopeia de Soares. A bíblica derrota de
Guebel na Band é apenas outro indício da onda avassaladora do dinheiro que
afoga a TV brasileira deste Brasil cínico que finge ser laico e imune à força
econômica da religião e seus falsos profetas. Os canais de rádio e TV são
concessões públicas, supostamente alheias aos credos e seitas religiosas que
transformaram estúdios, igrejas, templos e estádios em púlpitos eletrônicos
cada vez mais invasivos e escancarados.
Não existe ninguém no Governo
ou no Congresso brasileiros com coragem para frear essa flagrante ilegalidade,
sancionada por verbas, dízimos, patrocínios e uma farta hipocrisia. A
irrestrita capitulação aos padres e pastores que lideram milhões de fiéis (e
eleitores) ficou escancarada na última eleição presidencial, em 2010, quando os
dois principais candidatos com raízes na esquerda — Dilma Rousseff e José Serra
— sucumbiram vergonhosamente à chantagem das correntes mais atrasadas das
igrejas, frequentando missas e cultos com o gestual mal ensaiado de pios
devotos que não sabiam nem metade da missa, nem qualquer salmo dos evangelhos.
Encenaram um constrangedor teatro de conversão medida para não ofender o
eleitor mais ortodoxo. Para não perder votos, Dilma e Serra caíram na armadilha
do falso debate religioso sobre o aborto — um tema que um e outro, por mera
consciência política ou formação acadêmica, sabem que nos países mais evoluídos
não passa de um grave e secular problema de saúde pública.
A submissão das instâncias do
Estado secular ao poder cada vez maior das igrejas pode ser medida pela
intrusão cada vez mais descarada da fé nos meios eletrônicos do Brasil, que
deturpam a concessão pública pelo proselitismo religioso vetado
pelaConstituição. A igreja católica brasileira agrupa hoje mais de 200 rádios e
quase 50 emissoras de TV, contra 80 rádios e quase 280 emissoras de TV de oito
braços do crescente ramo evangélico. É um domínio que se fortalece cada vez
mais, embora adaptando seu perfil para fórmulas mais agressivas e despudoradas
de avanço sobre o bolso das populações mais pobres, mais desesperadas, menos
instruídas.
Comer ou dormir
Em agosto de 2011, a Fundação
Getúlio Vargas divulgou o Novo Mapa das Religiões, um denso estudo realizado
pelo Centro de Políticas Sociais da FGV, com base em 200 mil entrevistas
formuladas pelo IBGE em 2009 a partir de sua Pesquisa de Orçamento Familiar
(POF). O trabalho mostrou que o Brasil deixará de ser a maior nação católica do
mundo nos próximos 20 anos, mantida a queda progressiva que sofre a Igreja no
país. Ela representava 83,24% da população em 1991 e caiu para 68,43% em 2009.
“As mudanças que antes ocorriam em 100 anos agora acontecem em 10. Se esta
perda de 1% de católicos por ano continuar, a Igreja católica terá em 20 anos
menos da metade da população brasileira”, destacou o coordenador da pesquisa,
Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV.
A economia é um forte indutor
desta transformação, diz Neri. Ele lembra que as chamadas ‘décadas perdidas’ de
1980 e 1990 foram demarcadas pela queda do catolicismo em contraste com a
ascensão dos grupos evangélicos, especialmente seus ramos mais belicosos e
vorazes — os neopentecostais. O período de 2003 a 2009, compreendido entre duas
graves crises econômicas, observa uma segunda explosão evangélica, passando de
17,9% para 20,2%. A primeira explosão, ainda maior, ocorreu nas últimas seis
décadas do Século 20, quando os evangélicos aumentaram seu rebanho em sete
vezes: passaram de 2,6% em 1940 para 15,4% em 2000. A FGV foi buscar no alemão
Max Weber (1864-1920), o pai da moderna sociologia, o fundamento teórico que
explica o avanço arrebatador dos evangélicos, a partir de sua obra mais
conhecida — A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo, publicada em
1904-05. Ali, Weber explica o maior desenvolvimento capitalista nos países
protestantes no Século 19 e a maior proporção desses fiéis entre empresários e
trabalhadores mais qualificados. “A tese de Weber era que o estilo de vida
católico jogava para outra vida a conquista da felicidade. A culpa católica
inibiria a acumulação de capital e a lógica da dívida de trabalho, motores
fundamentais do desenvolvimento capitalista”, escreve Neri.
Weber repetia um ditado da
época: “Entre bem comer ou bem dormir, há que escolher. O protestante quer
comer bem, enquanto o católico quer dormir sossegado”. O pensador alemão
constrói seu texto em cima de máximas do inventor e calvinista americano
Benjamin Franklin (1706-1790), um dos líderes da Independência dos Estados
Unidos, que dizia que “tempo é dinheiro” e “dinheiro gera mais dinheiro”. Era
uma notável conversão justamente aos argumentos opostos que levaram ao grande
cisma do cristianismo, no início do Século 16, quando um atrevido padre
agostiniano alemão, Martinho Lutero, pregou nos portões da igreja de Wittenberg
as suas 95 teses que desafiavam a autoridade do Papa e quebravam a hegemonia de
Roma sobre o mundo cristão. Na época, Lutero denunciava justamente o que seria
o âmago da Reforma Protestante: o desvio do caminho de fé da igreja primitiva
para o atalho da corrupção, da indulgência, da simonia e da luxúria de papas e
cardeais rodeados de amantes e concubinas, antecessores lascivos dos bispos e
padres que comem criancinhas.
Teologia do bolso
Lutero e sua radical volta às
origens, estimulando o protesto aos desvios éticos de Roma e o retorno à
palavra original dos evangelhos, geraram os dois termos que identificam os
segmentos mais prósperos da dissidência cristã: os protestantes e os
evangélicos, onde brilha sua facção mais agressiva e endinheirada — o
pentecostalismo, que hoje abriga no mundo cerca de 600 milhões de seguidores,
pulverizados em 11 mil seitas e subgrupos. Ali viceja sua parcela mais
faustosa: a corrente neopentecostal, a que pertencem o abonado bispo R.R.
Soares e seus parceiros mais ricos, os também bispos Edir Macedo, Silas
Malafaia e Valdemiro Santiago, cada um chefiando sua própria seita, sempre na
condição suprema de ‘apóstolos’. Todos mostram uma devoção especial pela alma e
pelo bolso de seus seguidores, a quem não se acanham de pedir contribuições
financeiras a que, recatadamente, chamam de ‘oferta’.
Para não atormentar ainda mais
a vida de sua aflita freguesia, os quatro chefes religiosos tratam de facilitar
ao máximo as ofertas financeiras. Na tela da TV de seus animados cultos, sempre
se oferece o número das contas bancárias, a bandeira dos cartões de crédito ou
o telefone para informações extras que permitam a oferta, rápida e facilitada.
Nenhum deles fica ruborizado pela insistência do pedido de ajuda, porque todos
são pios devotos da ‘Teologia da Prosperidade’, uma doutrina pecuniária que
faria o velho Lutero engolir cada uma das 95 teses que vomitou contra a cupidez
da velha Roma.
A ideia nasceu, evidentemente,
no coração do capitalismo, os Estados Unidos, no início do Século 20. O pai
dessa fé sonante é o americano Essek William Kenyon (1867-1948), um evangelista
de origem metodista nascido em Saratoga, Estado de Nova York. Descobriu o
milagre do rádio e plantou ali a sua “Igreja no Ar”, a ancestral eletrônica dos
R.R.Soares e Malafaias da vida. Espalhou então aos quatro ventos o lema que
explica as benesses divinas da fartura: “O que eu confesso, eu possuo”.
Kenyon passou o bastão da
prosperidade para um conterrâneo, Kenneth Erwin Hagin (1917-2003), um jovem
texano com deficiência cardíaca, que caiu de cama quando adolescente. Garantiu
ter ido e voltado ao inferno e ao céu não uma, nem duas, mas três (três!)
vezes. Com este desempenho singular, até para campeões de esportes radicais, o
jovem naturalmente converteu-se. Dizendo-se ungido para ser mestre e profeta,
Hagin garantia ter tido oito (oito!) visões de Cristo na década de 1950, além
de acumular alguns passeios extracorpóreos. Tudo isso acrescido pela divina
revelação de que os verdadeiros fiéis deviam gozar de uma excelente saúde
financeira e que o caminho da fortuna passava, inevitavelmente, pela
prosperidade de seus profetas aqui na Terra. Foi sopa no mel, e a teologia da
prosperidade conquistou corações e mentes — e bolsos.
Na conta do santo
A primeira semente deste
ostensivo neopentecostalismo brotou no Brasil com a Igreja Universal do Reino
de Deus, fundada em 1977 pelo bispo Edir Macedo. Três anos depois, o pastor
R.R. Soares, casado com Magdalena, irmã de Macedo, saiu do ninho da Universal
para fundar sua própria igreja, a Internacional da Graça de Deus, que acaba de
alugar a tela do horário nobre da Band graças ao verbo divino e a verba
milionária do pastor. Uma década depois, o bispo Macedo, ainda mais próspero do
que o cunhado, comprou a sua própria rede de TV, a Record, hoje a segunda maior
audiência do país (4,7 pontos) no horário nobre das noites de dezembro passado,
embora ainda distante da Globo (13,8).
Os televangelistas brasileiros
aparentemente compõem um paraíso na terra e no ar rico em mirra, incenso e
ouro, muito ouro. Há tempos, quatro grupos evangélicos rondam o empresário
Sílvio Santos, que topa tudo por dinheiro, na esperança de amealhar o espaço
das madrugadas do SBT por módicos R$ 20 milhões mensais. Em 2009, o próprio
Edir Macedo alvejou sua maior concorrente: ofertou R$ 545 milhões para alugar o
espaço das madrugadas da Rede Globo para a sua Igreja. A Globo piscou, não
respondeu, e o bispo voltou à carga em agosto passado, disposto a mover céus e
terras. Nada feito.
A contabilidade desses
pastores, pelo jeito, oscila entre o inferno e o paraíso. O bispo que oferecia
milhões para comprar um naco do maior concorrente era o mesmo dono da Igreja
que fazia um descarado apelo em seu blog, em abril passado, para que os fieis
juntassem alguns trocados para ajudá-lo a pagar a conta salgada de seu site.
Coisa miúda, apenas R$ 107.622 mensais, que o pobre bispo diz gastar com
despesas mundanas como hospedagem do servidor, salário dos funcionários, água,
luz e gastos administrativos da manutenção do site. “Se o Espírito Santo lhe
tocar, nos ajude a carregar essa responsabilidade”, escreveu o bispo,
implorando por uma doação mínima de R$ 20.
O espírito santo,
aparentemente, tocou a Rede Globo. A emissora dos Marinho odeia o bispo Macedo,
mas adora os evangélicos. Na véspera do Natal de 2011, 18 de dezembro, a maior
rede desta vasta nação católica rasgou o hábito e transmitiu o seu primeiro
evento evangélico, gravado uma semana antes no Aterro do Flamengo, no Rio. O
público presente, apenas 20 mil pessoas, foi uma heresia para as ambições
bíblicas da Globo, mas a fiel audiência na telinha na tarde do domingo seguinte
foi uma bênção divina. Ao longo dos 75 minutos do programa, condensado de quase
oito horas de gravação ao vivo (entre 14h e 21h30), apresentaram-se nove
artistas no ‘Festival Promessas 2011′, sob o comando do astro global Serginho
Groisman. Um dos mais festejados foi o cantor Regis Danese, 39 anos, que vendeu
um milhão de cópias com um único disco gospel, “Compromisso”, o único a
conquistar o primeiro lugar em rádios e TVs seculares do país e que lhe
garantiu a indicação para o prêmio Grammy Latino em 2009.
A conversão da Globo
Antes desse sucesso, Danese já
era consagrado como artista do “Só Pra Contrariar”, um grupo de pagode que
ainda ostenta o 27º lugar do ranking brasileiro, com 8 milhões de discos
vendidos. Apesar disso, com problemas no casamento, converteu-se ao
protestantismo no início do século. Salvou o matrimônio com Kelly, sua parceira
musical, e engordou ainda mais o bolso. O álbum “Compromisso”, que conquistou o
‘Disco de Diamante’ pela venda de 500 mil cópias em apenas quatro meses de
2008, traz o seu maior sucesso, Faz um Milagre em Mim. O jornalista Tom
Phillips, do diário britânico The Guardian, anotou que, logo após sua
triunfal apresentação no festival da Globo, Danese foi indagado na entrevista
coletiva sobre os fundamentos deste milagre musical: “O senhor escutou a voz de
Deus? O que ele disse?”, perguntavam-lhe. O ex-pagodeiro explicava e, embevecido,
o isento repórter da revista Nova Jerusalém ressoava a cada resposta:
“Amém. Louvado seja o Senhor!”
A genuflexão da Globo não
representa uma súbita conversão da emissora ao credo evangélico da música: “A
Globo não é um canal católico, e sim secular e republicano. Apenas documentamos
um festival gospel por sua crescente importância na vida cultural do Brasil”,
esquivou-se Luiz Gleizer, diretor da TV, ao jornalista britânico que ecoou o festival
sob uma manchete embalada pela típica ironia inglesa: “O Gospel começa a dar o
tom no Brasil, a casa da bossa nova”.
Os profetas da Globo não sabem
entoar um único salmo, mas como os apóstolos eletrônicos da concorrência também
têm um ouvido afinado pelo doce tilintar das moedas do templo. Isso não é
contado nem no confessionário, mas os querubins globais sussurram nos
corredores da ‘Vênus Platinada’ que os direitos de comercialização e os espaços
publicitários do festival renderam à Globo algo entre R$ 35 milhões a R$ 55
milhões, o suficiente para remir muitos pecados, dúvidas e dívidas, aqui na
terra e lá no céu. O grupo é dono da gravadora Som Livre e de um catálogo
religioso onde brilham ídolos como o padre católico Fábio de Melo, que já
vendeu quase 2 milhões de CDs pelo selo global.
O olho cúpido e republicano da
Globo está mirando um mercado de música gospel que o The Guardian estima
em R$ 1,5 bilhão, um paraíso econômico onde se irmanam crentes, artistas,
emissoras laicas, pastores, espertalhões, vigaristas e políticos de todas as
crenças, devotos todos do santo dinheiro que cai do céu diretamente em seus
bolsos. O fluminense Arolde de Oliveira, deputado federal pelo PSD — aquele
diabólico partido nascido da costela do prefeito Gilberto Kassab e que garante
não pertencer nem ao paraíso, nem ao inferno, nem ao purgatório —, é dono da
rádio 93 FM e do Grupo MK Music, que ele jura ser o maior selo de música gospel
do continente. “Mais de 60 milhões de brasileiros estão direta ou indiretamente
ligados à Igreja Evangélica”, lembra o deputado Oliveira. A Globo, como se vê,
tem a inspiração divina e o ouvido apurado.
O festival Promessas abriu as
portas de uma terra prometida para os profetas globais. No domingo gospel, a
audiência da Globo subiu aos céus, dando-lhe a indulgência de miraculosos 13
pontos no Ibope (cada ponto representa 58 mil aparelhos ligados), bem mais do
que os 7 humildes pontos habituais do horário. O pastor Silas Malafaia, inimigo
da Universal do bispo Macedo, aproveitou e tripudiou no seu site: “A Record não
acreditou nos evangélicos, a Globo acreditou e arrebentou na audiência!
Enquanto a Record fala mal dos cantores e da igreja, a Globo abre espaço para o
louvor e adoração a Deus”. E arrematou com um desajeitado elogio que deve ter
sobressaltado as almas globais: “Quando os que deveriam abrir as portas fecham,
Deus usa os ímpios para glorificá-lo”. Iluminada pela santa promessa do Ibope,
a ímpia Rede Globo prepara mais três edições do sucesso gospel para 2012 — duas
versões regionais e uma nacional, evitando cuidadosamente o Rio de Janeiro, que
já padece a praga de um congestionamento evangélico todo santo ano.
O golpe do martelinho
Valdemiro Santiago é outro
desgarrado da Universal. Depois de ser considerado um virtual sucessor de Edir
Macedo, brigou com ele e saiu para fundar em 1998 a sua seita, a Igreja Mundial
do Poder de Deus. Começou com 16 membros e hoje o apóstolo Valdemiro chefia
mais de dois mil templos, alguns na África e em Portugal, e um jornal mensal,
Fé Mundial, com tiragem de 500 mil exemplares — além de um maçante trololó
diário de 22 horas na Rede 21, uma subsidiária da Rede Bandeirantes, que
administra as duas horas restantes.
Sua marca registrada é um
chapéu de boiadeiro, o que reforça sua imagem de astro sertanejo, que costuma
ganhar espaço até no Jornal Nacionalda Globo, uma devota do divisionismo
que Valdemiro poderia provocar nas legiões de seu arqui-inimigo Edir Macedo.
Quando enfrenta problemas de caixa, Valdemiro confia no santo gogó. Em 2010,
chorou diante das câmeras de TV ao convocar 150 mil fiéis para ofertarem R$
153, o número de peixes de um alegado milagre de Cristo. Faturou cerca de R$ 23
milhões.
Empolgado, o bispo sertanejo
imaginou outra forma esperta de arrecadar dinheiro fácil, mas desta vez sem
choro. Criou a campanha do “Martelinho da Justiça”, um pequeno, baratinho malho
de madeira capaz de quebrar mandingas, maus-olhados e “as pedras que atravessam
os seus caminhos”. A clava fajuta de Valdemiro, que despertaria a inveja do
grande Thor, devia ser canonizada como a mais cara do mundo: cada oferta pelo
martelinho tinha o mínimo de R$ 1 mil e Valdemiro esperava que 10 mil de seus
seguidores o abençoassem com a compra do mimo, o que rechearia seu chapelão com
R$ 10 milhões.
No reclame da Igreja Mundial
na TV, o pastor de português trôpego, voz rouca, terno e gravata mostrava a
certeza das favas divinas e muito bem calculadas: “Ainda hoje ou amanhã, na
primeira hora, você vai até a agência bancária e faz esta ‘ofertinha’ de R$ 1
mil. Depois, mandaremos o martelinho pelo correio”. Para esse milagre
acontecer, bastava ao crente fazer o depósito nas contas indicadas na tela e
disponíveis no Banco do Brasil, Bradesco ou Caixa Econômica Federal. “De
preferência no BB, como o nosso apóstolo tem nos orientado”, aconselhava o
pastor, com ar compungido.
A atrevida igreja de Valdemiro
já vendeu garrafinhas Pet de 400 ml com ‘água ungida’, entregues por ‘ofertas’
de R$ 100, R$ 200 ou até R$ 1.000, prometendo resultados espantosos: “Uma única
gota dessa água será o suficiente para mudar a história de sua vida, para lhe
abençoar de uma forma poderosa”, jurava o santo homem, escoltado por outros
oito pastores calados e sisudos, todos de gravata e terno escuro. Se usassem
óculos pretos iria parecer uma paródia do CQC, sem a divina graça do programa
humorístico da Band que sucede o show religioso do pastor R.R. Soares nas
noites da segunda-feira.
PASTOR VENDE ÁGUA UNGIDA POR 1,000 REIAS:
O trovão homofóbico
O bizarro merchandising da
Mundial tem produzido bons resultados, pelo menos para as finanças da igreja de
Valdemiro. No primeiro dia de 2012 ele inaugurou em Guarulhos, SP, a ‘Cidade
Mundial’, um megatemplo de 240 mil metros quadrados e capacidade para acolher
150 mil fieis da Igreja Mundial do Poder de Deus — mais de duas vezes a lotação
prevista do Itaquerão (68 mil lugares), o estádio que o Corinthians está
construindo para a Copa do Mundo de 2014. Para erigir o templo, Valdemiro viu a
igreja aumentar seus gastos mensais em R$ 30 milhões, prova de que o martelinho
e a garrafinha são realmente miraculosos.
O pastor Silas Malafaia, chefe
supremo da AVEC, sigla da associação que mantém a Igreja Vitória em Cristo, é a
voz mais trovejante desse abusado mercado da fé ancorado nos fundamentos
pétreos da Teologia da Prosperidade. Embora tenha os mesmos instrumentos de redenção
econômica de Edir Macedo, Malafaia é um inimigo mortal do dono da Universal.
Divergiram até na eleição presidencial de 2010: ele primeiro apoiou Marina
Silva, depois fulminou sua opção pelo plebiscito no debate sobre o aborto
(“cristão não tergiversa nesse tema”), e acabou fazendo campanha por Serra,
adversário de Dilma, apoiada justamente pelo rival bispo Macedo. Malafaia é
figura fácil no Congresso Nacional, em Brasília, onde veste a armadura de sua
santa cruzada contra a proposta de lei que combate a homofobia: “O projeto [que
garante a livre orientação sexual] é a primeira porta para a pedofilia”,
reza, com a fúria dos justos. Numa entrevista a uma revista religiosa,
crucificou como “idiotas” todos os pastores que, ao contrário dele, não apostam
suas fichas, martelinhos e garrafinhas na Teologia da Prosperidade.
Ele não poupa a garganta e
fala muito: quase todo santo dia, Malafaia se esparrama por cinco horas de
programas variados em redes nacionais como CNT, Rede TV, Boas Novas e
Bandeirantes e ocupa os sábados de emissoras regionais em outros 15 Estados.
Seu programa se espalha pelos Estados Unidos e Canadá e, desde meados de 2010,
Malafaia atinge 142 milhões de lares em 127 países da África, Ásia, Oriente e
Médio e Europa, com o apoio da americana Inspiration Network, que faz a
dublagem para o inglês.
Para tornar mais veraz sua
pregação, às vezes importa dos Estados Unidos especialistas nesta riqueza
material. No ano passado, junto com o pastor americano Mike Murdock, Malafaia
lançou o projeto do “Clube de 1 Milhão de Almas”. Alma, sabem os
televangelistas, custa caro. Ele pretendia arrebanhar um milhão de crentes para
sua grei e seus programas de TV, mediante a ‘oferta’ (voluntária, claro) de R$
1 mil — ou seja, um martelinho de madeira, pelo generoso chapéu do bispo
Valdemiro. Na conta do lápis, uma bolada plena de R$ 1 bilhão, capaz de pagar
mais do que cinco Mega-Senas da Virada, que bateu em R$ 177 milhões no réveillon
de 2011. Os ofertantes ganhariam o livro 1001 Chaves da Sabedoria,
do pastor Murdock, e um certificado do clube milionário, em todos os sentidos.
Para inspirar o seu rebanho,
Malafaia teve a feliz ideia de colocar um contador de acessos na página da
igreja para que todos acompanhassem a adesão em catadupa do milhão de almas.
Algo deu errado, ou o martelinho não funcionou. Lançado em abril do ano
passado, o contador da igreja Vitória em Cristo virou uma estátua de sal, como
a mulher de Lot em Gênesis (19,26) e estagnou num número pífio: miseráveis
58.875 almas era a contagem de quinta-feira passada, 5 de janeiro. Um inferno
de faturamento que não chegou a R$ 60 milhões, muito distante do paraíso do R$
1 bilhão arquitetado pelo diabólico Malafaia. Faltam portanto ainda 941.125
almas para Malafaia inaugurar, sob as trombetas de Jericó, o seu clube
milionário. Haja martelinho!
O supermercado da fé
O bravo Malafaia não desiste
facilmente. Em 2009 ele lançou a campanha de uma Bíblia por módicos R$ 900,
pouco menos que um martelinho. Era a tarifa da Bíblia da Batalha Espiritual
e Vitória Financeira, sacada genial de outro gênio da prosperidade, o
pastor americano Morris Cerullo. Desta vez, a garrafinha deve ter funcionado,
pois antes do final do ano ele viajou à Flórida, nos Estados Unidos, e lá viu
se materializar, em nome da Vitória em Cristo, um jato executivo Cessna quase
novo, modelo Citation Excel, pela bagatela de 12 milhões — de dólares !
Se alguém tiver alguma
restrição a Bíblia, martelinho ou garrafinha, nem assim terá qualquer
constrangimento para auxiliar o empreendimento celestial de Malafaia. Na sua
página na Internet (www.vitoriaemcristo.org), o bom
pastor dá a boa notícia de que todos podem participar de sua jornada,
tornando-se seu ‘Parceiro Ministerial’, um programa de fidelidade da Igreja que
arrecada fundos para manter seus programas de TV. A porta está aberta a
“qualquer pessoa que receba de Deus a visão de abençoar vidas, proclamando o
Evangelho por meio das mensagens do pastor Malafaia”, explica o dono do site e
da igreja. Dependendo do tamanho da carteira, seu título de parceiro também
cresce: o ‘Especial’ paga R$ 15 mensais, o ‘Fiel’ doa R$ 30 e o ‘Gideão’ entra
na cota de sacrifício do martelinho: R$ 1 mil mensais, com direito a um
exemplar por mês da revista Fiel, livros, Bíblias e um cartão para 10% de
descontos nos produtos da Editora Central Gospel comprados pelo telemarketing,
“desde que não esteja em promoção”.
Virar parceiro do pastor é
fácil, pagar é muito mais. A organização abençoada de Malafaia trabalha com o
ganhoso instrumental financeiro de uma grande loja de departamentos, como
convém a este éden da prosperidade. A igreja Vitória em Cristo opera, sem
preconceitos, com cartões Visa, Master, Diners, Amex ou Hipercard e tem contas
abertas, sem discriminação, com o Banco do Brasil, HSBC, Bradesco ou Itaú, além
de trabalhar com boletos bancários ou cheques nominais. Malafaia aceita boletos
antecipados para o ano todo, mas nenhuma contribuição abaixo de R$ 15. Acima,
pode.
Abobrinhas e beterraba
Agora, esse mundo dourado de
riquezas, promessas, ofertas, obras e fartura vai ganhar outro e inesperado
púlpito: um espaço de brilho, luzes e discussões mundanas, terrenas,
insinuantes, quase lascivas. Começa na terça-feira (10/1) a 12º edição do ‘Big
Brother Brasil’, o reality showda Globo que arrebata o país por 12
semanas no seu jogo canalha de perfídias, traições, intrigas e sensualidade
explícitas, onde garotas curvilíneas e garotos musculosos, todos transbordantes
de hormônios e carentes de neurônios, desfilam suas abobrinhas em diálogos
patetas e reflexões idiotas. O jornalista Eugênio Bucci, professor de Ética
Jornalística da ECA-USP e da ESPM, de São Paulo, tatuou o BBB como “o mais
deseducativo programa da TV brasileira, onde a fama justifica qualquer
humilhação”.
Na TV, onde nada se cria e
tudo se copia, a Record também tem sua versão BBB, “A Fazenda”, com mais roupa
e a mesma dose intragável de papo imbecil. A personal trainer Joana, a
vencedora da versão 4 da Fazenda, que acabou em outubro passado, arrebatou R$ 2
milhões após encontrar uma beterraba premiada, entre outros sofisticados
desafios intelectuais.
Apesar dessa crônica
indigência, mais de 130 mil jovens brasileiros se inscreveram para o BBB12, ao
longo de sete meses, filtrados em seletivas regionais em 10 capitais. É uma
febre televisiva que pode parar até a maior cidade brasileira, São Paulo, onde
chega a bater em 40% do Ibope, o que significa quase dez milhões de
telespectadores, metade da população da Grande SP.
A vencedora do BBB de 2011, a
modelo paulista Maria Helena, 27 anos, de São Bernardo do Campo, faturou um
cheque de R$ 1,5 milhão ganhando o voto por telefone de 51 milhões de pessoas.
Se fosse candidata a presidente em 2010, Maria Helena, capa da edição de junho
de 2011 da revista Playboy, teria derrotado José Serra por mais de sete
milhões de votos e perderia para Dilma Rousseff por menos de cinco milhões.
Boninho, o diretor do BBB,
apimentou a receita em 2012, para horror do pastor Malafaia, infiltrando quatro
homossexuais entre os doze sarados concorrentes. “Três dos quatro gays são
mulheres”, adiantou o lúbrico Boninho no seu tuíter. Ele não disse, mas o
programa de 2012 terá também a atração extra de duas evangélicas, a assistente
comercial mineira Kelly, 28 anos, e a zootécnica baiana Jakeline, 22. O
empresário Danilo Leal, 45 anos, pai de Jakeline, acha que a filha vai resistir
bem ao paredão impiedoso do BBB, apesar de evangélica: “Ela não é recatada.
Espero que Jakeline aproveite bem seus 15 minutos de fama e faça o pé de meia”,
reza o empresário, dando sua sanção paternal para o que der e vier.
A louvação
ecumênica ao dinheiro pintado pela hipocrisia de todos os credos esclarece, em
parte, a progressiva invasão destes templos cada vez mais eletrônicos,
escancarados por vendilhões cada vez mais acessíveis a espertalhões cada vez
mais abusados no assalto à boa fé de sempre dos desesperados.
O velho
evangelista Kenyon, profeta dessa cínica doutrina da prosperidade, poderia
traduzir este Armagedom moral com o mantra invertido da religião de resultado
que inventou: o que eu possuo, não confesso.
* Luiz
Cláudio Cunha é jornalista.
[cunha.luizclaudio@gmail.com]
[cunha.luizclaudio@gmail.com]
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deus abençoe por sua participação em nosso humilde blog.
São bem vindas suas críticas, sugestões e colaborações, para que, a cada dia mais, possamos falar e testemunhar do Amor Fraternal de Deus, por nós, imagem e semelhança do Criador. Deus seja louvado!
Atenção: Se for adicionar algum comentário, porém através de "nome sem perfil" ou "anônimo", há o direito de não publicá-lo! [Constituição Federal, art. 5º, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;]